quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Analogias entre “contratransferência” e a música: “Tanto Amar” de Chico Buarque

“Tanto Amar”

“Amo tanto e de tanto amar
acho que ela é bonita
tem um olho sempre a boiar e outro que agita
tem um olho q eu não está
meus olhares evita
e outro olho a me arregalar sua pepita
a metade do seu olhar está chamando para a luta aflita
metade quer madrugar na bodeguita
se seus olhos eu vou cantar, um seu olho me apura
e outro olho vai desmanchar toda a pintura
ela pode rodopiar e mudar de figura
a paloma no seu olhar vira miúra
é na soma do seu olhar que eu vou me conhecer inteiro
se nasci para enfrentar o mar no faroleiro
(...)suas pernas vão me enroscar num balet esquisito...”

Suponhamos que quem nos fala, através da música, é um terapeuta. Talvez possamos encontrar algumas semelhanças entre situações que ocorrem em meio aos processos psicoterápicos e outras que são descritas pela música, estabelecendo relações diretas com a contratransferência e também algumas questões indiretas relacionadas a influências perigosas para a relação terapêutica, que podem ser exercidas no terapeuta, caso ele não as reconheça claramente. Exemplo disto é a resistência por parte dos pacientes, seja em psicoterapia individual ou grupal.

“Amo tanto e de tanto amar acho que ela é bonita”: percepção da influência que seus sentimentos estão exercendo sobre suas ideias a respeito dela, mas ainda parecendo ceder em certa medida a tal situação, já que não possui clareza em sua visão no que se refere a ela. Remete à contratransferência que é reconhecida, mas não é alvo de reflexão suficiente.

“Meus olhares evita”: percepção da dificuldade, por parte da paciente de permitir “ser olhada” e, portanto, de permitir que o terapeuta possa ajudá-la a “olhar-se”, a entrar em contato com os próprios conflitos.

“Outro olho a me arregalar sua pepita”: momentos nos quais a paciente pode “entregar-se” à terapia, de modo a poder “arregalar sua pepita” e “olhar” para os próprios sentimentos, conflitos, etc.

“A metade do seu olhar está chamando para a luta aflita”: momentos nos quais a paciente entra em contato com suas questões internas, apesar da angústia, da aflição que isso lhe causa, pedindo a ajuda (aceitando-a) do terapeuta para lutar no sentido de aprender a lidar com as próprias dificuldades.

“Metade quer madrugar na bodeguita”: pressupondo-se que “bodeguita” deriva-se de “bodega” (taverna), e que taverna é um local onde se pode tomar bebidas alcoólicas, o que muitas vezes é sinônimo de relaxar e “esquecer” os problemas, isto pode nos remeter à ideia de uma indisposição de entrar em contato com conteúdos angustiantes (o que, em psicanálise, pode ser traduzido pelo conceito “resistência”).
“Outro olho vai desmanchar toda a pintura”: podemos associar este trecho com o poder desnudar-se, em certos momentos, por parte da paciente, de maneira a permitir ao terapeuta que a veja “sem pinturas”, sem camuflagens (“entrega”).

“Ela pode rodopiar e mudar de figura”: isto poderia representar as modificações que a paciente demonstra, como fruto do processo psicoterápico, o qual revela, como tantas outras situações de vida, avanços e recuos, facilidades e dificuldades com as quais tanto paciente quanto terapeuta precisam lidar.

“A paloma no seu mirar vira miúra”: considerando-se explicações fornecidas pelo dicionário de paloma (“meretriz”) e de miúra (“touro feroz, difícil de se lidar”), podemos supor que o trecho, mais uma vez, retrata a oscilação entre momentos de entrega e momentos de resistência, na medida em que “meretriz” (pessoa que “cede” bastante, ao menos em troca de dinheiro) transforma-se em “touro feroz, difícil de se lidar.”

“É na soma do seu olhar que eu vou me conhecer inteiro”: podemos fazer referência, mais uma vez, à contratransferência, que, desta vez, parece ser utilizada como instrumento para, através das questões trazidas pelo paciente, o terapeuta poder identificar questões suas, as quais, sendo desveladas e refletidas, podem conduzir ao autoconhecimento que leva, por sua vez, ao conhecimento do paciente e consequente possibilidade de ajudá-lo em sua necessidade do momento.

“Suas pernas vão me enroscar num balet esquisito”: em situações nas quais a própria contratransferência não é reconhecida e refletida, o psicoterapeuta pode “enroscar-se” nos conflitos trazidos pelo paciente, de maneira a formar um “balet esquisito”, isto é, uma relação em que se estabelecem comunicações verbais e não-verbais desprovidas de qualquer sentido que possa produzir resultados desejáveis.

escrito por: Letícia Kancelkis Porta.

Experiências de um grupo de adolescentes com sobrepeso e obesidade

Em minha pesquisa de mestrado, pude observar alguns fenômenos grupais e psicodinâmicos peculiares por parte dos sete adolescentes com sobrepeso e obesidade que compuseram o grupo.
É importante notar algumas tendências muitas vezes encontradas em pessoas que apresentam esses quadros e que pertencem à faixa etária em questão: com isto, podemos compreender questões etiológicas para o desencadear dos mesmos, conduzindo a práticas preventivas e interventivas eficazes neste sentido.
A seguir, exponho alguns dos resultados da pesquisa:

- a resistência em entrar na tarefa (associar livremente ideias relativas ao sobrepeso ou obesidade, demonstrada, por exemplo, por meio dos marcantes silêncios por parte dos participantes ou mesmo através das falas prolixas, além da aparente utilização de mecanismos de defesa, bem como da ocorrência de transferências, por parte do grupo.
Quanto à resistência, concordamos com Freud (1939/1996), quando afirma que a resistência impede qualquer modificação, aparecendo ela como transferência ou não, ao passo que, em nosso grupo, percebemos sua presença de diversas maneiras, parecendo funcionar por meio de verdadeiras manobras no sentido de se evitar entrar em contato com os próprios sentimentos conflitantes, impedindo, por tabela, qualquer mudança, nesses momentos.
Todavia, cremos que devam ser realmente esperadas tais manifestações, na medida em que, como Freud (1905/1996) nos alerta, o trabalho de desvelamento de questões inconscientes ocorre em face de uma contínua resistência, estando esse processo associado ao desprazer, o que conduz à rejeição do paciente em relação a ele, de modo repetitivo.
Não podemos deixar de citar a colaboração de Bion (1975), autor este que nos fala daquilo a que denominou supostos básicos, os quais, sendo também atividades mentais, parecem obstruir a atividade do grupo de trabalho, possuindo a característica de consistirem em fortes impulsos emocionais, comuns a todo o grupo. Dentre eles, presumimos haver uma situação grupal por nós vivenciada, qual seja aquela relacionada ao suposto básico de luta-fuga, representando o sentimento de que o grupo está reunido com a finalidade de lutar contra algo ou de fugir de alguma coisa.
- Outros fenômenos percebidos dizem respeito à voracidade (“ataque”), presente em diversos momentos das sessões, estendida a facetas da vida dos participantes, as quais parecem não corresponder somente à alimentar, bem como a demonstração do papel da oralidade para a constituição de seus quadros;
Neste sentido, parecem-nos importantes as contribuições de Freud (1905/1996) e Fenichel (2000), no sentido de descreverem, no nosso entender, o papel da oralidade no desenvolvimento desses comportamentos vorazes que presumimos estarem presentes nas vidas de nossos adolescentes.
Assim, a afirmativa de Fenichel (2000) parece-nos confirmada, na experiência com esse grupo, à proporção que ela inclui a idéia de que uma gula muito intensa pode apresentar-se de maneira manifesta ou sob a forma de derivados, podendo, de uma forma ou de outra, ter relação com o erotismo oral.
Desse modo, ao percebermos participantes com maiores índices de massa corpórea “tomando” mais a palavra, permanecendo longamente com ela, “arrancando” risadas de todo o grupo e fazendo detalhados relatos de alimentos muito apreciados (como se o degustassem, ali mesmo, na sessão), acreditamos estarmos assistindo a uma manifestação de uma “gula”, que se apresenta tanto explicitamente quanto sob a forma de derivados, sendo aparentemente mais fácil associarmos tais manifestações com o erotismo oral.
Em relação à oralidade dos participantes, então, ao desenvolvermos nossa pesquisa, notamos sua relevância no desencadear de seus quadros de obesidade e sobrepeso, amparados pelo conceito de Freud (1905/1996) de primeira fase do desenvolvimento da organização sexual. O autor nos fala da fase oral, em que a atividade sexual ainda não se desatrelou da ingestão de alimentos, de forma que o objeto de ambas as atividades é o mesmo: a incorporação do objeto. Notamos, em relação a isso também, que os participantes, estando em idade em que já podem expressar algum interesse pelo sexo oposto, parecem reprimir sua sexualidade, à medida que não aparecem quaisquer alusões ao tema. Levantamos, portanto, a hipótese de que apresentem uma retenção do erotismo oral, com a permanência de sua sexualidade associada à incorporação do objeto, em um acentuado vínculo com a ingestão alimentar.
É importante mencionar, por outro lado, que, segundo Bowlby (1969/2002), pode começar a haver uma atração sexual por indivíduos da mesma idade e do sexo oposto, na fase de desenvolvimento na qual se encontram nossos participantes. Entretanto, esse interesse não é expresso, em nenhum momento de nosso trabalho, por parte deles, o que pode demonstrar uma repressão dessa natureza, possivelmente reforçando a idéia de uma retenção da libido na fase oral.
- Mais um fenômeno encontrado, em nosso grupo, foi a regressão a fases primitivas, como defesa do mesmo, denotando a existência de transferência;
A concepção de Freud quanto à transferência, no princípio, envolvia a consideração desta muito mais como um obstáculo à análise do que podemos perceber em afirmações como a que ele faz em 1923, qual seja a de que ela, em sua forma positiva ou negativa, trabalha a favor da resistência; porém, pode tornar-se o mais eficaz dos instrumentos terapêuticos nas mãos do analista, exercendo um papel de valor inestimável no que se refere ao processo de cura (Freud, 1923/1996).
Compartilhamos dessa idéia, de modo a acreditarmos que, em nosso grupo, houve a manifestação de transferências, as quais, devido ao formato e objetivo de nosso trabalho, não foram interpretadas, por não implicar em um processo de cura, propriamente. Todavia, cremos na importância dessas manifestações, tanto no sentido de podermos compreender um pouco do funcionamento de nossos adolescentes, quanto no de, com a sua própria vivência das mesmas, sensibilizá-los em alguma medida, por meio das múltiplas formas em que esse fenômeno pode se expressar no grupo.
Assim, da mesma maneira como ocorre na análise individual, a transferência no trabalho analítico de grupo funciona como o principal ponto de apoio, sendo que a diferença entre elas encontra-se no fato de que, na primeira, o fenômeno se atualiza na pessoa do analista, enquanto que, na segunda, ele pode se manifestar sobre qualquer membro do grupo. O setting estabelecido na grupoterapia é favorável ao aparecimento de transferências e contratransferências, na medida em que o grupo remete ao ambiente familiar, estimulando e facilitando os fenômenos em questão, de forma bastante freqüente e maciça (Terzis, 1999).
Isto é o que notamos ocorrer em nosso grupo de pesquisa: esse fenômeno de forma frequente, a partir da observação de regressões aparentemente importantes a fases primitivas de desenvolvimento.
Neste sentido, estamos de acordo com Kaës (1977) quando se refere ao primeiro organizador psíquico, que pressupõe a busca da força, por meio do grupo, que pode passar a representar o útero materno, onde há uma unidade com o corpo da mãe, que não permite qualquer sensação de ameaça de inexistência, já que, nele, obtém-se todo o necessário, sem interrupções. Cremos, então, termos tido a oportunidade de assistir a tal experiência, em nosso grupo de pesquisa, de maneira a ter havido, presumivelmente, uma regressão a essa fase, o que conota a manifestação de uma transferência ao grupo como imago materna (por meio de falas prolixas, quase ininterruptas).
Esse quadro parece ter força muito superior à tendência relatada por Giuffre e Mackenzie (1996) quanto a uma forte preocupação social, em nossa cultura, por parte de muitos adolescentes, com dietas e exercício físico, refletindo uma verdadeira obsessão cultural com a esbelteza. Realmente, nosso grupo não manifesta, nas sessões, indícios significativos quanto à existência dessa preocupação. Parece, pelo contrário, preocupar-se exageradamente com sua satisfação / prazer experimentado por meio de aparentes excessos, sejam eles alimentares ou pertinentes a outras atividades.
- Outro fenômeno aparentemente presente no grupo de adolescentes foi a ressonância, em que se observam várias falas de uns participantes que realmente fazem sentido a outros, deflagrando, predominantemente, a cadeia associativa grupal;
É válido recordarmos, então, que a ressonância acústica teve seu conceito generalizado mediante a constatação de que se pode observá-la em todos os lugares, o que implica na existência de vibrações em todos eles, havendo, no grupo, um contato emotivo genérico que corresponde a esse conceito da física, apesar de a verdadeira ressonância ocorrer a partir de um determinado tema, fantasia ou sentimento, conforme defende Anzieu (1979).
É isto que cremos ter visto ocorrer em nosso grupo de pesquisa, que desencadeia, a partir de uma fala de um participante, uma cadeia associativa de ideias, no mais das vezes, sintonizadas entre si, em relatos diversos por parte dos membros a respeito de um mesmo tema. É assim, portanto, que se forma a cadeia associativa grupal de maneira, a nosso ver, satisfatória, em nosso grupo, de modo a fazermos tal afirmativa, pautados na idéia de Neri (1999) de que tal conceito refere-se a uma técnica que possibilita o surgimento de atividades em cadeia, com as quais cada participante colabora ao fornecer um elo essencial e particular / pessoal.
De acordo com Kaës (1977), a cadeia associativa grupal traz a possibilidade de busca de uma organização interna do material existente, como resultado do inconsciente do grupo, em que aparecem significados ocultos, reprimidos, que provavelmente não apareceriam no processo associativo do sujeito singular. Estamos de acordo com esse autor, na medida em que observamos, na própria comparação entre os conteúdos expressos nas entrevistas individuais e os manifestados nas sessões de grupo, o surgimento de temas e fantasias, de forma mais abundante e encorajada, nestas últimas.
• A tendência grupal da população adolescente também foi percebida, em nossa pesquisa;
Knobel (1981) prega a existência de uma Síndrome Normal da adolescência, expressa por características dentre as quais a tendência grupal, em que parte da dependência em relação aos pais pode ser transferida para o grupo. Parecem haver diversas expressões desta ordem, por parte dos membros de nosso grupo de pesquisa, conforme percebemos em numerosos relatos a respeito de atividades desenvolvidas no contexto grupal, com enfáticas afirmações, cujo conteúdo, em princípio, confere elevado grau de importância a essas situações.
- encontramos, ainda, questões relacionadas à satisfação - insatisfação, demonstrando o grupo ser quase impensável a ele suportar esta última, bem como o sentimento de vazio que parece impulsionar comportamentos vorazes.
Quanto a essas questões, pode ser primordial falarmos a respeito do constructo “Princípio do Prazer”, abordado por Freud (1920/1996):
Primeiramente, Freud nomeava o princípio do prazer como princípio do prazer-desprazer, representando que o aparelho psíquico apresentava a tendência de descarregar todo estímulo que viesse a provocar desprazer, com a finalidade de reduzir ao mínimo a tensão energética. Posteriormente, Freud passou a afirmar que os aumentos da tensão psíquica poderiam ser prazerosos, como, por exemplo, o acúmulo e retenção temporária da excitação sexual. Assim, o princípio do prazer remete à catéxe pulsional que demanda gratificação imediata, sem levar em conta a realidade exterior, resultando em frustração, por não ser capaz de suportar as exigências e necessidades da mesma, como uma fome real que não pode ser satisfeita por meio da sucção do polegar (Freud, 1920/1996).
Assim, cremos nessa relação, à medida que os adolescentes de nosso grupo de pesquisa parecem buscar a saciedade de uma fome que não é física (ou, ao menos, puramente física). Assim, parece não haver influência do princípio de realidade, de modo satisfatório, mas sim uma preponderância do princípio do prazer, em que há a ideia inconsciente de que não se obterá o prazer sem a existência de um excesso (alimentar).
Portanto, ao observarmos tais indícios de fenômenos grupais e psicanalíticos, parece-nos plausível considerarmos que o grupo pôde ser sensibilizado por intermédio de nosso trabalho.
Além disso, podemos concluir que o objetivo de propiciar a sensação de apoio, de “Holding”, tal como ocorre com bebês de mães suficientemente boas, conforme nos fala Winnicott (1993), parece ter sido atingido, a partir de nossa observação quanto ao acolhimento que a maioria das falas de cada participante obteve do grupo.
Acreditamos termos identificado os temas evidenciados pelas discussões, ações e interações do grupo, bem como alguns dos significados simbólicos possíveis das suas ações mais expressivas e das comunicações verbais. Além disso, os objetivos relativos à sensibilização dos participantes e ao proporcionar de condições necessárias para o sentimento de ser cuidado, apoiado (holding) também nos parecem satisfatoriamente conquistados.